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Dona Zica, centenário Ashanti

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Rio – Misteriosas mulheres negras desembarcaram no cais do Valongo para serem escravizadas. Seminuas, sujas, arrasadas pelo cansaço e maus tratos, só não perdiam a noção de que caberia às “escuras” a posse do segredo precioso da dignidade: cérebro e coração não poderiam ser despidos, porque sua roupagem vinha amarradinha do berço da humanidade.
O que sabiam as negras, nos corações e mentes? Que iriam ter descendentes e povoar com sua grandeza a cultura brasileira. Trataram de tomar banho, fazer uma papa cheia de sustança com ingredientes baratos, colocar balaio de coisas para vender na cabeça, tudo isto para aumentar o nenhum dinheirinho que advinha da cozinha da senhora elegante e branca, cheia de compaixão declarada em contrição. De ganho, trataram as pretas de ver em Barbara sua Yansã, em Jorge, Ogum, e na Pomba o Oxalá. O mistério feminino africano tinha se instalado sem mala e de cuia nas terras de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Desta linhagem nasceu Eusébia, afilhada de Cabocla e filha de Gertrudes. Nomes engraçados para o fogo da resistência que ardia naqueles peitos chamados Ashanti (mulher forte da África). Por isso a madrinha trocou rapidamente o nome de Eusébia pelo título de nobreza “Zica”, segurou o cajado das candaces e bateu na têmpora da negrinha, exclamando: “Vai Zica, vai ser referência de vida…”
Cumprindo seu destino, aos quatro anos invadiu o Buraco Quente da Mangueira para tornar-se primeira e única. Passos soprados por Agotime, Anastácia, Ginga: menina empregada-doméstica na Zona Sul, levava sopapos diários da chique madame. Mas nada desnudava seu coração, encharcado nas tinas de sua mãe lavadeira que, sem homem, educou cinco filhos.
Um dia foi ao baile e Cartola encontrou seu sapatinho de palha da costa: o príncipe era músico perturbado pela exclusão social, e cabia à Cinderela segurar o tranco do mágico compositor, porque a Estação Primeira era o palácio festivo da dupla predestinada. Germinal do samba, síntese da realeza; que recebeu nos salões do Zicartola toda a corte de bambas do ziriguidum, em noites memoráveis.
O grito fino da Deusa quando saía o resultado dos Desfiles. O lenço brilhoso amarrado sobre os brancos cabelos. Os peripaques, os arroubos de amor em feijoada verde e rosa. Uma energia de liderança de negras mulheres sambistas, que paira sobre o breque e o rufar dos tambores, tanto na velha África quanto na Sapucaí. Agora que se aproxima o centenário de nascimento da nobre Zica, percebo que ela refez em sua existência toda a trajetória incansável da diáspora, que trouxe o mistério da eterna superação para as verdejantes colinas da Guanabara.


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