Santa Maria da Boca do Monte

Agora já tenho o meu circo que pegou fogo, e matou um monte de gente que tinha ido lá se divertir. Sempre ouvi falar desta estória que aconteceu em Niterói, e que tinha deixado José Datrino em transe, a ponto de transformá-lo no atormentado profeta Gentileza. Mas era uma fábula distante, que não vivi, não vi, não senti.
Mas a manhã deste domingo me trouxe uma mensagem de meu companheiro, pelo celular, me informado que duas centenas de jovens numa boate tinha morrido, e que as portas fecharam porque nao podia sair sem pagar a comanda de consumação. Não me interessei porque era forte demais, para meu espirito de Poliana. Mas ele chegou da academia e ligou a Globo News, e aí comecei a ver a cara da população chorando do lado de fora, um senhor careca com cara de pai ou avô de um dos jovens mortos. Corpos saindo cobertos por um plástico branco, e lentamente a tragédia já está dentro de mim. Agora minha geração já tem seu edificio Joelma incendiado, seu circo em chamas. E este sentimento contundente nos invade com um incomodo de “nós poderíamos estar lá, nós frequentamos lugares iguais a esta boate”. E não consigo ouvir o relato sem ser um deles, sem me colocar no lugar: sou eu que levanto os braços em súplica, sou eu que não posso baixar para respirar o ar perto do chão, sem fumaça (porque a lotação me espreme em pé), sou eu quem me dirigi ao banheiro pensando ser saída de emergencia. Estou frito, estou condenado. É isto que nos marca, comove, nos possui: estamos lá, agonizando, com aquela gente. Não importa os 1.800 que escaparam. Só interessa os 200 que foram trancados.
Guardas que fechavam os portões do Coliseum com cristãos lá dentro, enfrentando leões que os devorariam; marinheiros que fecharam as grades da terceira classe no naufragio do Titanic, deixando para o afogamento famílias com menos dinheiro, porque não havia botes suficientes para os endinheirados. O que pensa esta gente, que determina quem morre ou não? A vida por uma comanda com algumas cervejas e refrigerantes? Como assim, pago depois o que voce quiser, mas primeiro me deixa sair deste inferno!
Pacatas cidades que entram para o inconsciente coletivo com residencia da dor, do turbilhão incompreensivel que junta universitarios em festas para ajudar na formatura, e a fumaça que inalada é mortal. Temos que passar por isto, vamos enterrar os cadáveres e exigir mais sistemas de emergencia com segurança, para estes grandes fornos crematórios. Como Gentileza, nós carregaremos estes andrajos e correntes para sempre: velhos, vamos nos lembrar do dia em uma boate pegou fogo, no Rio Grande do Sul.