Agora ele está procurando a gravação de Moça, de Wando, para possuir. Posse mesmo, ter, comprar, armazenar o arquivo, guardar preso para sempre dentro do coração, junto com as outras do ritual. Ele, na penumbra, com seu álcool preferido, ouve e ouve sem parar, para sempre, musicas que evocam um passado, que eu não sei se para ele era melhor que hoje (minha hipótese é que naquele tempo ele sonhava e tinha vinte anos, todo o futuro pela frente, e agora, aos cinqüenta, ele deve sonhar com o sonho que tinha e que poderia se transformar em real). Não sei se o sonho sobrou, hoje; só sei que trinta anos se passaram e ele os perdeu para a concretização de algum devaneio que ficou lá. Por isso ele pára, hoje, e volta perdido no túnel do tempo. São as pessoas que conhecemos e que ficam evocando uma coisa lá de trás. Umas, imobilizadas cultuam o ido. Outras, curtem como curtição o breve passeiozinho e voltam. Me lembro de uma vizinha que todo sábado de manhã, pegava a enceradeira e deixava a sala lustrando, ouvindo na vitrola sempre o mesmo LP de Martinho da Vila da década passada. Trabalho feito, desligava a vitrola e voltava para curtir o resto do fim de semana. Sua evocação do sonho tinha dia e hora marcada.
Um outro, sempre que pode, volta aos desfiles antigos da Marques de Sapucaí: põe o fone no ouvido e fica cantando os sambas daqueles anos. Canta a pulmões abertos, volta à arquibancada de concreto e descreve em frases curtas como estava, o que fazia, qual o sanduiche que comera, etc e tal. São relâmpagos, nele de prazer absoluto. Sabe que hoje a vida é melhor, só passeia na memória para dizer: éramos pobre, e muito felizes. Depois de tudo, dia amanhecendo, pegavam o ônibus de volta para Maricá. Não há melancolia no cansaço, é tudo prá cima. Será que ele volta para os antigos desfiles pára dizer “Graças a Deus, melhorei”? Ou o prazer morre ali mesmo, sem conexão com a vida presente? Que tipo de humanos somos, que precisamos voltar ao passado?
Vendo-os, um preso na quimera do sonho sonhado, e outro liberto pelo prazer de regurgitar o que passou, fico de cabelo em pé comigo mesmo: não tenho tempo para o passado. Não o evoco em sistema, não procuro, senão por motivo rápidos, sempre profissionais. Mas paro andando numa rua se ouço, de repente, uma canção de outrora. Revivo o cheiro, relembro os personagens mortos na estrutura da memória, e num átimo de segundo sigo em frente me esquecendo do que já tinha me esquecido. Meu presente é total, absoluto, porque depois da tempestade, sempre virá a bonança. Jamais o passado se configura íntegro como o presente, porque ele foi-se, e resta agora somente a glória de viver o resto de meus dias.
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EVOCAÇÃO E FUTURO
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